A Arte de Conservação e Restauro

 

Entrevista a Ana Bailão

por Alexandre Coxo, 20 de Junho de 2020

Ana Bailão é especializada em Conservação e Restauro de Pintura de Cavalete. O seu percurso faz dela a pessoa mais indicada para nos falar de Conservação e Restauro.

Licenciada em Conservação e Restauro pelo Instituto Politécnico de Tomar, Mestre em Técnicas e Conservação de Pintura e Doutorada em Conservação de Bens Culturais, especialidade de Pintura pela Universidade Católica Portuguesa, é, actualmente professora na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, no Departamento de Ciências da Arte e do Património.

Começou a sua carreira com a intervenção de três pinturas renascentistas pertencentes à Charola do Convento de Cristo, em Tomar. Desde 2004 que realiza intervenções de conservação e restauro em obras antigas e contemporâneas, para o Estado e particulares.  

Nesta entrevista tive o privilegio de saber mais sobre o seu percurso e sobre os desafios que o Conservador-restaurador enfrenta.

O que a levou a seguir a carreira da Conservação e Restauro?
Escolhi esta profissão devido ao meu gosto por arte e porque queria aliar a fruição dos objetos com a sua salvaguarda.

 

Há quanto tempo se dedica à conservação e restauro? Há alguma área em que o seu trabalho se foca mais?
Terminei a minha licenciatura em conservação e restauro em 2005, pelo Instituto Politécnico de Tomar. Desde ai tenho trabalhado sempre na área, na especialidade de pintura de cavalete. Em 2006 ingresso no mestrado de Técnicas de Conservação de Pintura na Universidade Católica Portuguesa onde aprofundo um dos tratamentos de conservação e restauro que se designa por reintegração cromática (procedimento que devolve a cor às áreas de lacuna). Em 2010, já no doutoramento em Conservação de Bens Culturais, e na mesma instituição, dou continuidade aos estudos iniciados no mestrado. Por isso, para além de me dedicar mais ao estudo da conservação e restauro de pintura, gosto de investigar temas associados à reintegração cromática tais como aglutinantes, pigmentos, vernizes, entre outros.

 

Como o público geral deve interpretar o ofício do Conservador-restaurador?
A atividade de conservação e restauro não é bem conhecida. Desconhece-se que para se ser um conservador-restaurador em Portugal é necessário ter formação superior de cinco anos em conservação e restauro, mais cinco anos de experiência profissional. Desconhece-se que quem trabalha para o Estado ou em bens culturais classificados ou em vias de classificação tem de preencher este requisito. Existe legislação especifica para a profissão (Decreto de Lei 140/2009).

O profissional de conservação e restauro é responsável pela preservação do património cultural. E para isso tem que ter formação multidisciplinar, uma formação artística, técnica e científica. Áreas como a história, a química, a física, a biologia, a engenharia dos materiais, entre outras, têm um papel importante.

Por todos estes motivos, a atividade profissional do conservador-restaurador é distinta das profissões artísticas ou artesanais. Também é importante realçar que os conservadores-restauradores não criam novos objetos culturais, apenas os preservam respeitando a sua autenticidade e originalidade.

 

Sente que a conservação e restauro tem ganho mais respeito por parte das pessoas em geral?
A conservação e restauro é uma atividade recente. Os primeiros cursos superiores aparecem em 1989. Aos poucos, e à medida que mais profissionais se formam e fazem doutoramento, a profissão começa a ganhar mais respeito e impacto.

Em relação ao público em geral, tenho tido bom retorno. Acham uma profissão bonita e sentem curiosidade pelo que faço, embora não percebam exactamente no que consiste, nem quais os limites de intervenção pelos quais me guio (Código de Ética Profissional).

Qual a peça mais antiga que já teve de intervencionar? E quais os desafios que enfrentou?
Na realidade foram um conjunto de obras. Tive o privelégio de intervir em três das pinturas renascentistas da Charola do Convento de Cristo a convite do conservador-restaurador Frederico Henriques, responsável pela obra. São pinturas a óleo sobre madeira de carvalho, cada uma com cerca de 4 metros de altura e 2,5 metros de largura, pintadas no inicio do século XVI. Para realizar a intervenção, que durou dois anos, tive de viver no Convento de Cristo. Foi uma experiência única. Foi igualmente um desafio a dimensão das obras, o peso, a magnitude das imagens, e os tratamentos realizados para solucionar os problemas de deterioração, alguns deles inovadores à época (2004-2006).

 

No processo de devolver cor às áreas perdidas de uma peça que preocupações têm na seleção dos materiais que irá inserir? Que tipos de tinta usa? A qualidade é importante? Os materiais inseridos deverão ser reversíveis ou permanentes? Porquê?
O processo de devolução da cor às área de lacuna designa-se por reintegração cromatica. Este procedimento, à semelhança de todos os outros na conservação e restauro, preocupa-se com a estabilidade e removibilidade dos materiais a longo prazo. Os materiais selecionados devem ser compativeis com a obra, mas não devem ser iguais. Isto é importante porque, se for preciso removê-los por algum motivo, não dissolvemos a obra original, não provocamos danos. São vários os materiais utilizados. Estes são selecionados em função do tipo de obra, do estado de conservação, do local onde a obra estará em exposição ou acondicionada, entre outras variáveis.

Tenta-se utilizar materiais cientificamente estudados, materiais que em situações similares deram bons resultados e que têm garantias de estabilidade a longo prazo. É normal o recurso, por parte do conservador-restaurador, a técnicas laboratoriais para analisar e compreender o comportamento dos materiais, seja dos materiais constituintes das obras, seja dos materiais usados na conservação e restauro e a interação destes com os das obras. 

Seja qual for o material selecionado é obrigatório que seja reversivel/removível. Este critério deve-se a dois pontos de vista: um está associado ao facto da obra ser o bem mais precisoso num tratamento. Qualquer adição de material deve ser feita para preservar, conservar o objeto, não para o substituir ou alterar. O outro, está relacionado com o envelhecimento natural dos materiais. Todos os materiais envelhecem, os da obra e os adicionados pelo conservador-restaurador. No entanto, tem idades e composições diferentes e por isso tempos e comportamentos de envelhecimento diferentes. É normal que alguns materiais adicionados precisem de ser substituidos. Por isso convem serem reversiveis.

 

Faz sentido usar materiais de menor qualidade/resistência para intervir uma peça de materiais de melhor qualidade/resistência, e vice-versa?
Não. Independentemente da qualidade material da obra o conservador-restaurador deve usar sempre materiais e produtos da melhor qualidade.

“para se ser um conservador-restaurador em Portugal é necessário ter formação superior de cinco anos em conservação e restauro, mais cinco anos de experiência profissional.”

Ana Bailão a intervir numa pintura de José Malhoa, durante a preparação das obras para a exposição “Reviver Malhoa entre Amigos”, em 2018. Fotografia cedida por Ana Bailão.

A conservação de monumentos, e das obras a eles associadas, é referida nos media como uma operação frequente e cuja procura tem vindo a aumentar.  Intervir em obras de artistas contemporâneos é igualmente frequente?
Sim. Também é frequente. O uso de tecnicas mistas e a experimentação de materiais numa mesma obra tem condicionado o modo como as obras se deterioram. Também o manuseamento e o acondicionamento inadequado promove a deterioração rápida de obras compositas. Em pintura contemporânea, por exemplo, tem vários danos nas periferias por uma simples razão: ausência de moldura e manuseamento inadequado. Manchas e impressões digitais, de natureza lipidica, são dificeis de resolver e são inestéticas. Levam muitos proprietários a procurar o conservador-restaurador em busca de uma solução para o problema. Lacunas periféricas são também patologias normais, para além dos pequenos rasgões e fungos.  

 

Já fez trabalho de conservação e restauro em obras de artistas contemporâneos? Quais as semelhanças e quais as diferenças entre a intervenção numa peça de arte antiga e uma peça de um artista contemporâneo?
Sim, já intervi em obras contemporâneas. Se tivermos a falar em obras mais convencionais, realizadas com as tintas tradicionais (óleo, acrílico, alquídicos, aguarela, entre outros), sem adicão de outros materiais, a principal diferença reside no tempo de vida dos materiais constituintes das obras. Para tentar passar a ideia de uma forma mais simples, se pensarmos, por exemplo, numa pintura antiga, a óleo, do século XVI, XVII ou XVIII e até XIX, temos um aglutinante que já polimerizou, isto significa que está mais duro e insolúvel. O óleo de uma pintura do século XX, segunda metade, e XXI não tem o mesmo envelhecimento e por isso vai ser mais sensivel a vários materiais que usamos nos tratamentos em pintura antiga.

 

Quão importante é a qualidade dos materiais e dos procedimentos para a produção de uma obra de arte? De que forma isso pode refletir na sua durabilidade?
A qualidade e o modo como se aplicam esses materiais é determinante. As obras realizadas com materiais instáveis ou com combinação instável de materiais leva a que os processos de degradação ocorram independentemente da intenção artistica. A execução material da obra conduz a uma degradação rápida, e, em algumas ocasiões, contra a vontade inicial do artista.

 

Qual é a importância da documentação feita pelo artista para o trabalho do conservador restaurador?
A documentação é importantissima. Embora hoje em dia seja prática corrente o uso da entrevista, durante a fase de diagnóstico, para se conhecer melhor a obra, o artista nem sempre se lembra de tudo o que fez, usou e como o fez. Ter o registo pode ajudar na tomada de decisão acerca de tratamentos a realizar e de materiais a utilizar.

No caso da pintura, qual ou quais os aspectos mais decisivos para a sua preservação?
Existem vários aspectos que condicionam. O tipo de tela, por exemplo. Quanto mais aberta a tecelagem, menos área de contacto têm os estratos superiores e isso poderá conduzir a destacamentos e consequentemente lacunas. Se a opção forem os derivados de madeira (aglomerados de fibras duros, aglomerados de particulas, aglomerados de média densidade (MDF)) podem ocorrer outros tipos de danos, como empenos, cantos lascados. A escolha pelo MDF não é uma boa opção devido ao seu processo de fabrico. É usada a resina de formaldeído para união das fibras de madeira. A libertação de formaldeído, sob a forma de gas, à medida que o aglomerado envelhece, não só é tóxico, por contaminar o ar que respiramos, como interage quimicamente com os pigmentos e aglutinantes.

A escolha do aglutinante também condiciona, assim como os pigmentos. Por exemplo, a camada pictórica ou camada de tinta, formada pelo óleo de linhaça, possui características de resistência, flexibilidade, coesão, elasticidade, que são inferiores numa camada pictórica formada pelo óleo de noz ou de papoila. Todavia, o de linhaça amarelece mais do que os outros dois. Também há pigmentos que interagem, por exemplo, os azuis de ftalocianina (com cobre na composição) e os cádmios. Mas como em tudo há vantagens e desvantagens. É preciso um equilibrio.  

 

Qual o aglutinante que oferece maior durabilidade? Por quê?
Não posso afirmar que um é mais duradouro que outro. Posso apontar características, vantagens e desvantagens. Na questão anterior dei o exemplo do óleo. Mas se falarmos em acrílicos, temos a vantagem de serem aquosos e a rápida secagem. E que podem ser usados com o óleo, desde que este último seja aplicado como última camada e não como primeira, respeitando os tempos de secagem.

 

Como selecionar pigmentos resistentes?
A compra deve ser controlada e os materiais que se compra devem ser certificados. Há várias marcas que comercializam pigmentos: Sennelier, Schmincke, Kremer pigmente, entre outros. Cada um destes fornecedores especifica no seu website a ficha técnica dos seus pigmentos. Deve-se optar pelos que têm uma estabilidade à luz ou permanência de cor excelente. Esta informação normalmente consta nos rótulos. Caso não conste, deve estar indicada no website. Caso não seja clara, é melhor não adquirir esse produto. Outra forma de perceber qual o pigmento que se está a usar em determinada tinta é procurar o Nome de índice de cor, que é indicado pela abreviatura conjunta de Pigmento + descrição da cor, como por exemplo Pigment Blue = PB, seguido do número que identifica o pigmento PB 29 = Azul Ultramarino. Se PB 29 constar no rótulo da aguarela, do guache, do acrilico, do óleo, etc, podem ver o que é no website Color of Art Pigment Database disponível aqui:
http://www.artiscreation.com/Color_index_names.html#.XsZx8URKjIU

 

Proteger uma pintura aplicando verniz é importante? Por quê?
O verniz pode ser considerado uma película protetora de agentes externos. Pode servir de filtro aos raios UV, que contribuem para o desvanecimento das cores, e também como forma de proteção contra a deposição de sujidades e poeiras sobre a superficie do estrato pictórico. É importante saber selecionar o tipo de verniz a ser usado para evitar dissolução da camada pictórica, caso seja preciso remover. É igualmente importante que a camada pictórica esteja totalmente seca antes da aplicação do verniz.

 

Que conselho daria a um pintor no sentido de garantir o máximo de longevidade das suas obras?
O conselho passa pelo uso de materiais certificados, da gama profissional, com provas dadas de durabilidade, além do cumprimento das técnicas pictóricas, seja na escolha do suporte, seja na escolha a técnica pictórica, tendo especial atenção à regra do “gordo sobre magro”. O acondicionamento e transporte das obras são igualmente momentos criticos onde ocorrem muitos danos. Por isso, investir na proteção das obras é igualmente uma prioridade. Ir para além disto é intervir no processo criativo. E isso não deverá acontecer. 

Deve-se optar pelos (pigmentos) que têm uma estabilidade à luz ou permanência de cor excelente.

Na imagem: pigmentos em pó e os aglutinantes de reintegração. Fotografia cedida por Ana Bailão.

Para quem adquiriu uma obra de um artista contemporâneo, que cuidados deve ter para a melhor conservação da peça?
Conhecer os materiais constituintes, ter as obras em espaços estáveis, sem oscilações significativas de temperatura e humidade porque isso pode dar origem ao aparecimento de fungos. Evitar ter a luz do exterior a incidir diretamente sobre as obras. Assim diminui-se a ação dos raios UV sobre os pigmentos, que conduz aos desvanecimento. Ter igualmente atenção ao tipo de lâmpadas usadas no interior da habitação.

 

E para quem deseja adquirir uma obra de um artista contemporânea, que cuidados deve ter para se salvaguardar quanto à durabilidade?
Verificar se a obra está executada ou não com materiais instáveis ou com a combinação instável de materiais. Aconselhar-se junto de um conservador-restaurador.

 

Como é que as pessoas podem encontrar ajuda de um conservador-restaurador? O que podem perguntar para se salvaguardarem e confiarem que estão perante uma pessoa preparada?
Deverá contactar uma instituição de referência onde exista um conservador-restaurador. Os museus, as instituições de ensino superior que têm os cursos de conservação e restauro. Há também o Instituto José de Figueiredo, um laboratório para a conservação e restauro, sobre o qual é possivel saber mais nesta reportagem da Visita Guida (https://www.rtp.pt/play/p5656/e434436/visita-guiada). Existe também uma Associação Profissional de Conservadores-restauradores. Em Portugal, um conservador-restaurador deve ter 5 anos de formação superior (licenciatura + mestrado) e 5 anos de experiência profissional. Esse será um dos critérios a terem em conta. Depois é tentarem conhecer o percurso profissional ao longo desses 5 anos. Se é especialista nos objetos em causa ou não. Caso não seja, por regra é recomendada outro profissional.

 

Por último uma curiosidade: Os conservadores-restauradores podem ser consultados para ajudar a distinguir uma obra falsa de uma original? Pode dar um exemplo? Já alguma vez esteve envolvida numa peritagem?
Sim. O conhecimento técnico e material acerca dos objetos, a experiência na observação e o recurso a técnicas laboratoriais, podem ajudar a validar ou não a autenticidade de uma obra. Já o fiz, para pintura antiga (que não era assim tão antiga) e para pintura contemporânea.

Foi um enorme prazer entrevistar a Ana Bailão, a quem agradeço muito esta oportunidade.

Pode acompanhar o seu trabalho através do site Heritage Projects:  http://heritageprojects.pt/

A sua tese de doutoramento – “Critérios De Intervenção E Estratégias Para A Avaliação Da Qualidade Da Reintegração Cromática Em Pintura”, pela Universidade Católica em 2015 – está acessível em: https://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/20111

A Ana é a coordenadora do evento bianual “Congresso ibero-americano investigações em conservação do património”. Pode aceder clicando no link:
http://www.belasartes.ulisboa.pt/lll-congresso-ibero-americano-investigacoes-em-conservacao-do-patrimonio-lcp/  

É, também, a fundadora do grupo internacional de reintegração cromática – RECH Group – que promove eventos e workshops na Europa acerca da reintegração cromática de Bens Culturais. Mais informações consultar o link: http://rechgroup.pt/

Gostou da entrevista? Tem alguma curiosidade ou gostaria de colocar alguma questão sobre estes assuntos?

Diga qual é a sua opinião ou indique quais são as suas dúvidas, deixando um comentário no formulário.

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