De Clandestino a Artista Plástico
Entrevista a Domingos Júnior
por Alexandre Coxo, 17 de Outubro de 2020
Domingos Júnior nasceu em Moçambique, no ano de 1950. Aí frequentou o núcleo de Arte sob a orientação do pintor António Quadros entre 1964 e 1968. Licenciou-se em Arquitetura pela ESAP.
Foi docente da área de Expressão Plástica do 2º ciclo do Ensino Básico. Na ESAP, foi docente do curso de Arquitetura, e na UTAD dos cursos de Educadores de Infância, Professores do 1º ciclo, Arquitetura Paisagista e Engenharia Ambiental. Também, exerceu arquitetura em empresas e em atelier próprio.
Atualmente, desenvolve a atividade de artista plástico, comissariado e organização de actividades culturais, que pratica desde 1993.
Nesta entrevista, Domingos dá-nos a oportunidade de saber como foi a atividade política antifascista e o papel da arte nessa altura. Também nos fala das suas influências, de como vê o mercado da arte e das seus mais recentes obras.
Como começa o seu interesse pelas artes plásticas?
O contato com as artes começou com a supervisão de António Quadros, que abriu horizontes nesse campo. Pela primeira vez tomei contacto com a arte e a cultura, desde perceber a pintura, a escultura, o cinema, a fotografia… foi a partir daí que o meu interesse pelas artes se formou. Tudo em quatro anos consecutivos de práticas estéticas com ele em Moçambique.
O que mais lhe interessa/motiva a produzir arte?
Em primeiro lugar é a produção de cultura, ou seja, interessa-me produzir artefactos que veiculem assuntos interessantes, a partir das quais se possam questionar ou levantar determinados valores e assuntos que me motivam. Por outro lado, para mim, é também uma atividade lúdica, o desenho e a pintura sempre foram coisas profundamente lúdicas, que gosto de fazer, de experimentar, de manipular os materiais e assim junto o agradável á comunicação.
Antes de ser arquiteto esteve envolvido em atividades políticas, essas experiências relacionam-se com o que entende por arte?
Claro, porque toda a atitude política que nós temos se reflete no que fazemos, seja arte ou não. Ao fazer arte não consigo escapar ao refletir e ao incluir nas obras todo os valores porque me debato na política. Mas não de uma forma propagandística ou fundamentalista.
Alguma vez fez um trabalho que seja explicito do ponto de vista político?
Não, não acho que a arte tenha de ser propagandística. A não ser quando ela tenha exatamente essa intensão e nesse sentido já fiz. Uma vez pediram-me um cartaz para comemorar o 25 de Abril, e ai fiz um cartaz com determinados estereótipos, que, embora de uma forma não estereotipada do ponto de vista do desenho, tiveram de ser representados: a paz, a guerra colonial, a pomba, os cravos, enfim… os símbolos que são usuais, não obrigatoriamente, mas naquela altura senti que teria de ser assim.
A arte do ponto de vista da atividade em si, não tem de ser propagandística necessariamente. Também, não nego que possa ser. Conheço muitos artistas que o são e que o são de forma explicita, por exemplo, todos os artistas que trabalham no contexto do realismo socialista são explícitos na propaganda do que estão a fazer, até porque tem uma encomenda muito rígida a que responder. E nem por isso, alguns deles, foram artistas menores. Antes do advento do Nazismo houve artistas que fizeram obras brilhantes do ponto de vista da denuncia dos horrores do que para aí vinha, na altura, como o Grosz.
Não ponho de parte este tipo de coisa, mas não vejo necessidade, neste momento, de transformar a minha obra num panfleto ou outro meio de propaganda. As ideias estão lá plasmadas, mas de uma forma subtil. Às vezes, de forma tão subtil que eu tenho consciência que as pessoas poderão não entender. Por exemplo, eu fiz uma série em lápis de cor, baseadas numa coisa que parecia abstrata, porque àquela escala não se percebia que a referência eram imagens de vírus, bactérias, etc. Eram imagens manipuladas a partir dos 10 micro-organismos mais mortais que existiam à época, exatamente para ilustrar a metáfora de uma coisa lindíssima e angélica cuja imagem mente. No fundo o que lá estava plasmado não era nada belo. O que eu queria discutir era a imagem, que pode ser muito bela, mas pode ter por trás coisas muito más e por isso propagandear coisas muito más.
Acha que ainda faz sentido falar da democratização da arte hoje em dia?
Eu acho que faz sentido falar de democratização da arte sempre. Eu não quero falar no sentido que às vezes as pessoas entendem, que é sermos todos capazes de fazer e entender a arte por igual. Houve uma coisa que nós aprendemos desde cedo que é: nem a Arte, nem a Ciência, nem a Cultura são do senso comum, apesar de haver um senhor que tenta discutir isso, Sousa Ventura, “o que é o senso comum na ciência e na cultura”, mesmo assim, é um projeto dele, interessante, mas eu não acredito que seja possível. Acredito que é possível levar o maior número de pessoas desde tenra idade a contactarem com a arte de modo a que tenham a capacidade de lidar com ela de forma mais à vontade do que seria quando se sente incomodados na presença de um objeto artístico. O contacto com a cultura devia ser uma função obrigatória do ensino. Não falo só das artes plásticas, mas de todas, música, teatro, etc. Um país é tão mais rico do ponto de vista cívico, quanto mais contacto tiver com a cultura.
A arte tem uma função pedagógica?
De certo modo tem, mas não uma função pedagógica direta. A arte por si só não ensina nada a ninguém. Só ensina se as pessoas quiseram aprender, ou seja, o processo de aprendizagem com a arte é um processo que não dependo do artista, mas do utente da arte, nesse aspeto estou perfeitamente em linha com o Humberto Eco, em A Obra Aberta, e com todas as teorias que dizem que quando lês um romance, tens uma leitura silenciosa que nunca é igual à leitura de outro que lê o mesmo romance. A loira que tu estás a ver no romance não é a loira que o outro está a ver. E o mesmo acontece com a obra plástica, ainda há pouco disse que desenhei os vírus mais letais e isso não quer dizer que os outros vejam a mesma coisa. Foi muito engraçado que quem comprou uma das peças, disse que não lhe interessava que fossem vírus porque ela via uns nenúfares num lago. Nós podemos ter muito boas intenções, mas depois cada um tira das intenções o que pretende. E de boas intenções…
“não acho que a arte tenha de ser propagandística. A não ser quando ela tenha exatamente essa intensão e, nesse sentido, já fiz.”
Título: 3º das NATUREZAS MORTA(I)S
Materiais: lápis de cor s/ papel
Dimensões: 100cm x 70cm
Quando participou em atividades políticas, como as artes plásticas eram usadas?
A arte servia a propaganda das forças politicas de oposição ao regime através de cartazes. Murais nem tanto porque demoravam muito tempo a realizar e à luz do dia era impensável fazê-los. Faziam-se pichagens com frases de protesto muito breves que eram rápidas de fazer, inicialmente com um pincel e um balde, depois com sprays que ainda eram mais rápidos e ficavam marcados e levava tempo a limpar. Depois havia uma impressa clandestina que era feita com meios rudimentares, processos de reprodução manual à base de stencil, os textos eram escritos à mão ou à máquina e mais tarde com máquinas elétricas. Os processos de reprodução eram manuais, depois com policopiadoras a álcool e, numa última fase, com policopiadoras eletrónicas. O uso do stencil e as formas rudimentares de propaganda foram o que imperou, sobretudo nos partidos mais pequenos. No PCP às vezes conseguiam introduzir no avante, que também era clandestino, algum tipo de imagens como gravuras que conseguiam através de rolos de impressão com linóleo ou gravura em madeira. Eram sempre meios rudimentares que se pudessem meter dentro de uma residência e que a qualquer momento pudessem ser escondidos e que se fizesse parecer uma residência normal. Geralmente até viviam casais para dissimular ainda mais e aparentar normalidade. Por exemplo, o Dias Coelho foi viver com a Margarida Tengarrinha, que era sua mulher, para fazerem da casa uma gráfica clandestina. O PCP contava com muitos artistas plásticos, nos outros casos os artistas serviam todos os fins. Por exemplo, descobri recentemente que para o PCPML, o partido a que pertencia o Pacheco Pereira, uma colega minha, a Maria José Abrunhosa, na altura a estudar arquitetura no ano anterior ao meu, fazia os desenhos para a impressa do partido.
Normalmente eram desenhos muito lineares porque eram adaptados à forma de imprimir. No Grito do Povo, que era do partido de que fazia parte, PCPR, sobretudo na parte estudantil, sei que era a Isabel Lanho que fazia a maior parte das ilustrações. Não sei se havia de outro lado mais ilustradores, nunca os conheci. Depois do 25 de Abril, conheci um arquiteto que fazia caricaturas para o Grito do Povo, mas aí já era outra coisa e com outros meios.
A principal função das imagens era propaganda, criava-se uma ilustração em função dos textos que se escreviam. Não havia muitas imagens e o objetivo era dar um aspeto mais enriquecido e apelativo à publicação. Pensava-se que as imagens eram apelativas e que eram de certo modo didáticas.
Não se discutia o que eram os públicos como se faz agora. Nos partidos políticos, o público alvo era, nos folhetos para os estudantes eram a classe estudantil, nos folhetos virados para a classe operária e o povo eram a população em geral que se queria atingir. As pessoas depois recebiam na caixa do correio de uma forma clandestina, leriam ou não. Ou aparecíamos à entrada de uma fábrica e distribuíamos, o mão-a-mão foi mais depois do 25 de Abril, como fiz muitas vezes em Lisboa, até conversávamos com as pessoas e discutíamos o que era a política e por aí adiante.
A ilustração era essencialmente realista, mas de um realismo primário, porque fazer desenhos nestes processos é difícil, por serem rudimentares. Ilustrava-se a ideia de que o proletariado tinha de tomar o poder, que o povo é que tinha de ir para o poder, que era preciso fazer uma revolução. No fundo não saímos disto.
Também havia as ilustrações símbolo, como a foice e o martelo, os líderes do comunismo – Marx, Engels, Estaline, Mao Tsé-Tung … e pouco mais havia. Eram ilustrações que pretendiam apenas ser mais uma forma de enriquecer a escrita, pensando que os públicos alvo aderiam a elas.
Não eram imagens do ponto de vista artístico eloquentes.
Em paralelo havia artistas que eram de oposição. Como é evidente havia artistas de regime, mas a partir de um determinado momento, a grande maioria dos artistas e intelectuais eram de oposição. Era difícil encontrar alguém que fosse claramente a favor do nazismo e do fascismo. O que não quer dizer que tivessem todos a mesma ideologia. Basta olhar para todos os pintores neorrealistas e ver que aquilo era claramente a apologia da defesa do povo e contra o sofrimento a que estava sujeito, etc. O Júlio Pomar, o Cipriano, o Dias Coelho, e muitos mais, usavam a pintura de forma critica. Aí as ferramentas eram mesmo as da pintura, eram as armas da academia. Foi como a canção que se transforma numa arma de protesto. Também a poesia, etc. Mas aqui a arte é mais erudita e subtil quando não metafórica nas mensagens.
Na impressa clandestina o que havia era uma forma, sem querer, conservadora de fazer propaganda. Embora pensando que aquela era a forma mais direta de chegar às pessoas. De certo modo era muito conservadora porque a linguagem era muito simplista e muito redutora na sua mensagem. Mesmo assim, para fazer este tipo de coisas, chamavam-se artistas plásticos, gente das belas-artes, porque eram eles que tinham as ferramentas e a agilidade para as fazer.
Enquanto arquiteto teve oportunidade de praticar a arquitetura como manifestação artística?
A arquitetura é sempre uma manifestação artística, ao mesmo tempo uma manifestação de caracter simultaneamente pragmático e funcional, técnico e científico. Nós não nos podemos, quando fazemos arquitetura, alienar nem de uma parte, nem doutra.
Ou seja, quando se agarra numa obra sabe-se claramente que há três aspetos pelo menos a ter em conta: o financeiro, os materiais/técnicos e a expressão. Todos condicionam as escolhas do que poderá ser feito.
Há ainda outro fator, que os arquitetos devem considerar, que é o caracter sociológico, embora seja extremamente complexo e difícil. Hoje em dia não acredito que a maior parte dos arquitetos tenha capacidade ou consciência de que modo está a intervir e que cidade está a fazer, ou seja, que tipo de sociedade está a criar. Nunca me hei-de esquecer que um senhor chamado Dr. Geraldo Coelho Dias me disse “Você é arquiteto, por isso está condenado a fazer obra de deus”, eu respondi que “graças a deus, ainda não consigo saber o que é que deus quer, por isso vou fazendo o que sou capaz e o que entendo”. Eu percebi a ideia dele, no sentido em que o arquiteto condiciona a maneira como os outros vão viver. Coisa que não é bem verdade porque muitas vezes o arquiteto não é mais que um medianeiro do que os outros querem fazer, a não ser que diga que não o vai fazer… mas alguém o há-de fazer. Mas isto não é correto.
As referências da arquitetura são as suas influências nas artes plásticas?
Não, ou seja, de uma forma direta e imediata não. Sou um bocado como o Corbusier que dizia pintar é pintar, arquitetar é arquitetar. É evidente que os conceitos estéticos de um modo geral, as noções de gosto estão implicitamente nos meus trabalhos. Não há maneira de fugir, nós não conseguimos ter um gosto, uma formação estética e visual para fazer um edifício, e ter outra maneira na pintura. É claro que estamos a falar de coisas diferentes e, portanto, parece que são completamente autónomas, mas nunca o são. Do ponto de vista intelectual nunca o são, serão do ponto de vista prático.
Acha que a pintura é um espaço de expressão própria?
A atividade humana é sempre uma atividade pessoal e envolve um esforço muito grande. Quando tens de fazer uma tela, tens de discutir uma tela, de preparar de fazer esboços, o projeto, tens de saber o que queres fazer. Num edifício é a mesma coisa, eu fazia montanhas de esquiços para montar uma porta ou o corrimão de uma escada ou o perfil de uma janela. É este lado que muitos dizem ser sofrido, que a mim me dá muito gozo, mas que evidentemente dá muito trabalho. Não é uma coisa do foro íntimo, como às vezes as pessoas pensam. É uma função intelectual e dá trabalho.
Esse sofrimento é o maior desafio que enfrenta enquanto criador?
Não, o maior desafio é fazer coisas que valam a pena e que os outros digam que de fato valem a pena. Se não, andamos aqui a fazer terapia ocupacional.
“faz sentido falar de democratização da arte sempre”
Título: Cântico dos Cânticos
Materiais: tinta da china s/ papel
Dimensões: 100cm x 100cm
Como vê o mercado da arte de hoje?
Como todos os mercados. A arte não foge as regras dos outros mercados. Vivemos num sistema capitalista, as obras são mercadoria e sofrem os trâmites de qualquer outra mercadoria. É um artigo de luxo, é vendido sempre em função da gama de produto que os consumidores podem comprar ou estão interessados em comprar. É como tal que é vendida e circula e por isso mesmo é gerador de uma economia. Há muita gente a ganhar com isso, os leiloeiros, os galeristas, os curadores, os artistas, os museus. Efetivamente, ao contrário do que muitos pensam, a arte é geradora de economia. Um país que respeita a arte e a cultura, também está a respeitar um desenvolvimento económico. Infelizmente, a maior parte dos governantes não vê isso assim, enquanto que vêm dessa maneira o turismo e abrem museus para atraírem turistas, ainda não pensaram que antes disso tem de estar a cultura porque é ela a geradora de um circuito económico que envolve muita gente, que envolve muitos processos e dinheiro. Quando digo cultura, digo da forma geral, como o futebol que envolve fortunas. Se hoje Serralves tem muita gente, e os bancos apostam em exposições que ultrapassem os dez mil visitantes, é porque se criou esse publico. Esse público criou-se nas escolas com os projetos pedagógicos que se faziam juntamente com Serralves. Há cada vez mais pessoas interessadas nestes fenómenos culturais e, portanto, a cultura é geradora de riqueza, mas não só.
A foram como as pessoas vem a arte mudou relativamente aos anos em que estudava em Belas Artes?
Claro e significativamente, por dois motivos: naquela altura apenas 2% da população tinham acesso ao ensino superior, a grande maioria tinha apensas a quarta classe, a pobreza era generalizada, o mundo rural vivia de uma agricultura de subsistência, era extremamente conservador e submisso a tudo o que eram poderes dominantes, um operariado que vivia em condições péssimas, do pior que se pode imaginar, um imenso mundo de emigração porque havia fome e não havia trabalho, e universidades cegas de um ensino ortodoxo, rígido, sem abertura nenhuma. Havia uma cultura muito reduzida e fechada, muito poucas elites e com pouco contacto com o estrangeiro. Portugal estava completamente fechado e autista. A arte era virada para um núcleo muito pequeno de pessoas, muito restrito e conservador e que tinha condições económicas e financeiras para andar nesses circuitos. Tudo o que saia dai era altamente visto de soslaio, quando era visto, e recusado pelo regime. Além disso o número de artistas era muito pequeno. O mundo da arte era muito pequeno e restrito. O 25 de Abril fez a massificação e a democratização do ensino, o que trousse outra consciência intelectual, quer a gente queira quer não, por muitas críticas que se façam de que as pessoas aprendem muita coisa, mas não sabem nada, não é verdade. A consciência da maioria dos jovens de hoje é maior que na altura, tem um maior grau de informação e de abertura para o mundo e para as coisas do mundo. Pode não se refletir logo em consciência cívica ativa, mas reflete-se noutra visão do mundo. Hoje há constantemente públicos em eventos artísticos. Na altura não havia pura e simplesmente. A consciência da importância do contacto com a cultura que hoje a juventude tem é muito maior, há mais pessoas a produzir cultura. Basta dizer que há dezenas de milhar de artistas plásticos em Portugal. Quando se critica a situação de hoje, e há razoes sérias para se criticar, há que ter memória. Hoje não estamos no mesmo pé que estávamos, o Salazarismo era a coisa mais bafienta e terrível que se possa imaginar. Havia pessoas que vinham para a cidade servir porque em casa o hábito era dividir três sardinhas com pão seco pela família uma vez por dia. Hoje tens um tipo de organização e de solidariedade que noutros tempos não havia e o que havia era às escondidas.
Os pontos positivos foram muitos, mas apesar dos 50 anos, ainda há muito tiques do passado.
Pode dar algum exemplo do caso das artes?
No caso das artes, tal como naquela altura, há uma organização das artes como lobbies. As pessoas vivem muito em função do conhecimento de…, do amiguismo, do lóbi, e é a partir dai que se criam os sistemas de validação da obra. O que eu acho profundamente errado e acho que não devia ser assim. Sei que estes sistemas são reflexo da própria organização da sociedade, mas era suposto que os meios culturais tivessem um papel ativo na tentativa de mudar este tipo de situações. Não estou a pedir aos intelectuais que façam milagres do ponto de vista destas coisas. Alias, não acredito na mitificação da arte nem na mitificação dos intelectuais como os senhores que vão salvar o mundo, mas tem um papel: o de se transformaram em massa critica que reflita sobre estes fenómenos e que não permita que haja um marasmo muito grande. De facto, no campo das artes, eu acho que há um marasmo muito grande neste momento. Em Portugal há uma tendência para aceitar os lobbies com uma facilidade muito grande, a nível central e local. Basta ver que os artistas em Portugal têm projeção quando se internacionalizam, porque são gente que não está agarrada a um só polo ou lóbi e tem um grau de autonomia grande.
Será por isso que não há artistas de estado?
Não e é engraçado que nesse aspeto ainda é pior. O estado deveria ter, quer queira quer não, uma função de apoiar as artes, não é apoiar os artistas, é apoiar as artes fomentando um conjunto de iniciativas que através do orçamento, e não só, promovendo a democratização da cultura, do acesso à cultura e à produção de bens culturais, etc. Ainda nada disso é feito de uma forma sistemática e organizada. Basta olhar para as autarquias, elas querem ter artistas, mas não querem pagar os artistas. Fazem os fóruns culturais que acabam por não servir para nada. Nem fomentam a cultura nem fazem circular os bens culturais que o próprio estado deve adquirir. Por isso é que há museus. No tempo de Salazar, a pesar da miséria franciscana, a cultura era a casaca do regime, e por isso adquiria alguns bens culturais para mostrar que o regime tinha dignidade… a arte servia de propaganda. De facto, nestas coisas todas, ainda falta dar um passo grande, na consciência de que a cultura não só é um bem económico, mas um bem que o estado deve promover, apoiar e de certa forma sustentar. Os museus não estão cá para terem as obras de sempre, não estou a dizer que o estado deve ser um estado de luxo, mas deve ser fundador da nossa cultura.
O que te atrai mais na arte contemporânea?
A capacidade de me dar ou criar contacto com objetos e manifestações que, de certa forma, manifestam os interesses do nosso tempo, de uma forma lúdica ou estética. O Brecht dizia que cada povo tem o teatro que merece, e que o teatro serve principalmente para entreter. A mim interessa-me do ponto de vista lúdico. Gosto de ver coisas belas, muitas pessoas dirão que é um disparate, mas não é.
Embora haja coisas feias que me interessam porque fazem parte da arte. Aliás fizeram parte de uma grande fatia da arte moderna que serviu como arma de arremesso contra determinados poderes.
Também me interessa o lado provocador e critico dos tempos.
“há uma organização das artes como lobbies. As pessoas vivem muito em função do conhecimento de, do amiguismo,… é ai que criam os sistemas de validação da obra.”
Vista da exposição “Água”
Ordem dos Arquitetos do Porto, 2017
Nos seus trabalhos, quais os temas e materiais que mais gosta de usar? E como se relacionam com as suas ideologias?
Uso praticamente todo o tipo de materiais, desde o lápis de cor, tinta da china, guache, óleo… sobretudo gosto de experimentar materiais. O suporte que eu privilegio é o papel. Não quer dizer que não trabalhe noutros, mas os papeis seduzem-me muito mais.
Os temas têm andado á volta de questões sociais que me preocupam, principalmente no que toca a questões sociais ligadas à arte. Em que medida é que arte pode ou tem de dizer alguma coisa às pessoas sem ser nem moralista, nem propagandista, nem fundamentalista de qualquer coisa que seja, mas que, de algum modo, possa questionar alguém.
Há um assunto que me interessa sempre na arte, que é explorar os caminhos da estética. Em que medida é que a imagem é manipulável, até onde se manipula a imagem e que resultados se obtém com essa manipulação, são sempre assuntos que me interessam. Está implícito que as questões ideológicas e a minha postura social e política estão sempre presentes. Acho que ninguém faz escolhas fora da sua maneira de estar e de ser. São sempre escolhas muito pensadas, salvo situações experimentais, faço um projeto em que pesquiso e estudo o que quero fazer. Vou fazendo e emendando as imagens que estou a produzir, e no fim, mesmo assim, muitas vezes o projeto não sai exatamente como estava pensado. Precisamente porque a questão de como é que a ideia está a ser pensada e comunicada é para mim sempre tão importante quanto a forma de como é feita.
Dando um exemplo: quando fiz os desenhos a lápis de cor, comecei… 2012/2013… uns desenhos aparentemente abstratos de coisas de aparência não realista. Usei tinta da china porque toda a vida usei tinta da china enquanto arquiteto e achei que fazia sentido usar esse meio noutro contexto. Os desenhos a tinta da china resultaram de pesquisas sobre o mundo animal microscópico, que constitui a maioria dos seres vivos e sem os quais não existiríamos. As pessoas olham para as telas e coisas irreais. Chamei-lhes “Jardins”. Os jardins são uma forma de “culturalizar” (esta palavra não existe… manipular) a natureza, manipular de uma forma cultural e ideológica. Para mim eram jardins oníricos e fantásticos, mas eram baseados nesses seres microscópicos monocelulares que se vão multiplicando e a partir de um momento são imaginados por mim. Quando as pessoas olhavam para aquilo diziam: “porque é que são jardins?”… não faziam leitura direta com a natureza, a imagem era extremamente ambígua. Lembro-me de comentarem “estes desenhos de tripas têm piada”, foi o que viu e cada pessoa via a sua coisa.
No fundo, as escolhas de materiais de quase todas as exposições que fiz tem a ver com o facto de ter estado no ensino. Eu achei que há uma tendência para subvalorizar o tipo de materiais usados por crianças ou que não fazem parte da arte porque não são expressivos ou nobres como os outros. Também era uma questão que se levantava na arquitetura. Trabalhei com os materiais que os miúdos usam, mas de uma maneira que nós adultos conseguimos fazer.
A seguir aos trabalhos com lápis de cores, fui convidado para uma outra exposição e fiz uma série de colagens. Os papeis foram preparados por mim com as cores primárias, o branco e o preto, que são as cores básicas que se explicam aos miúdos na introdução à teoria da cor e a partir dos quais se podem obter todas as outras cores. As colagens foram feitas com temas vindos do último testamento, porque nós somos formados nessa tradição judaico-cristã e que os temas são, ainda hoje, muito fortes para as pessoas. Há coisas que só percebemos que assim são até fazermos o confronto com outras culturas e começamos a descodificá-las. Embora visse essas coisas de forma um bocado critica. O pecado original, a queda dos anjos, no fundo, não me acredito em nada disso e por isso critiquei deus, o deus que é culpado por tudo isto. Se foi ele que criou essas coisas, ele é que é culpado. Os outros, apesar de tudo, estão limitados. E depois foi pegar em assuntos do novo testamento, mas que já estavam no antigo, como a Torre de Babel. No fundo, o que quero questionar é a minha crença profunda de ateu, embora eu tenha a formação judaico-cristã e não possa fugir a ela. A haver deus, então a culpa é de deus, e a partir dai não vale a pena uma pessoa preocupar-se com mais nada. Esta ideia é um bom encosto, até para o assassinato. Toda a exposição foi feita com base nisso.
Está a desenvolver algum trabalho novo? Tem alguma exposição prevista?
Sim, surgiu exatamente na situação de confinamento. Por um lado, toda a gente falava em fazer exposições sobre o vírus, o que não me apetecia, por outro não podia ir comprar materiais. Então resolvi trabalhar a partir de cadernos da moleskine que tinha, tipo japonês (em harmónica). Já os tinha trabalhado na horizontal, e agora decidi fazê-lo na vertical. Como tinha visto, numa viagem para a aldeia, um rebentar da natureza, tanta flor e tanta cor nos campos, e também no jardim aqui em casa, os pássaros nem se afastavam. Eu achei que tinha de falar do desconfinamento da natureza. Primeiro numas aguarelas… achei que devia ver o lado bom, a natureza não tem moral, mas como estamos fechados em casa quinze dias, a natureza aproveitou a ocasião.
Como tinha mais cadernos, e na vertical exigiam um raciocínio de composição diferente, decidi experimentar. A partir daí, e baseado em elementos da natureza, comecei a produzir mais.
Neste momento tenho uma série de tiras verticais, digamos assim, que se ligam a esta noção do que é a natureza. Cada tira tem materiais diferentes, não que isso faça das peças tão experimentais quanto isso. O tema é transversal, é uma pintura/desenho com todo o tipo de materiais, desde aguarela, tinta da china, lápis de cor… É evidente que há alguma coisa de crítica. Gosto da natureza e gosto de estar no meio do natural, mas não é este lado lúdico que me interessa. No fundo o que é o desconfinamento da natureza se não uma critica a nós próprios? O que são raízes e mais raízes entrelaçadas se não uma alusão ao que somos? Sem uma tradição que contrua a humanidade, somos muito pobrezinhos, de certo modo a viver em estados de barbárie. A barbárie só é possível quando não temos consciência do que foi a nossa construção enquanto humanos e das consequências que foram tendo as coisas todas que fizeram a nossa história. Foi tudo feito à custa de sangue e é bom que não tenha de correr muito mais. Há-de chegar o dia em que a barbárie acabe, em que a construção da sociedade à custa de sangue acabe para começar a construir-se à custa de outra coisa qualquer. É uma utopia, mas pelo menos essa crença eu tenho.
Isto ainda me atira para uma outra coisa que é a tradição da pintura de paisagem. A paisagem tem sobretudo um valor simbólico, visivelmente nos românticos. A paisagem fala de outros assuntos, da fé e da crença em deus com o Caspar David Friedrich. No Constable e no Turner também tem. Sempre marcada por uma construção utópica. Se calhar as pessoas vão ver umas tirinhas com umas plantinhas muito bonitas, mas o projeto vem dai. Ainda não tenho data para expor, este ano não o vou fazer e provavelmente só depois desta coisa do vírus estar resolvida.
Para quem deseja adquirir uma obra de um artista contemporânea, que cuidados deve ter para a melhor escolha da peça?
Se poder adquirir, que adquira o que gosta. Há exceção das pessoas que adquirem com a perspetiva de fazer dinheiro com elas, acho que devem adquirir o que podem comprar dentro do que gostam. Quando compro coisas para minha casa, escolho dentro do que gosto, ou então não compro porque não tenho dinheiro. Quando compro música, escolho o que gosto, se gosto de uma estampa para a parede, compro pelo mesmo motivo. Ou porque achei piada ou engraçado, acho que é esse o conselho. Os grandes colecionadores não precisam dos meus concelhos para nada, eles já têm quem os oriente.
Por último: Qual deve ser o papel dos artistas plásticos hoje?
Hoje em dia estamos numa sociedade totalmente plural, é a isso que chamamos democracia, e inevitavelmente a função do artista plástico é plural. Para mim felizmente, não há como fugir a isso.
Não queria estar numa sociedade ditatorial onde só houvesse uma arte.
Gostou da entrevista? Tem alguma curiosidade ou gostaria de colocar alguma questão sobre estes assuntos?
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